Joël Bats assombra as lembranças de uma geração brasileira órfã de
títulos mundiais. Depois da dor de 1982, o Brasil esteve perto de curar
suas feridas na Copa do Mundo de 1986. Não curou. A defesa do goleiro da
França, em cobrança de Zico, justamente de Zico, é um dos raros poréns
na biografia do camisa 10, que completa 60 anos neste domingo. Em
entrevista ao GLOBOESPORTE.COM em Lyon, na França, o algoz do Galinho
recordou aquele dia fatídico e agradeceu ao brasileiro pela fama
internacional que alcançou depois daquele lance.
- Às vezes tenho a impressão de que só joguei esse jogo em minha vida - disse ele.
Bats é treinador de goleiros do Lyon. Na França, conviveu com vários
jogadores brasileiros: Juninho Pernambucano, Fred, Ricardo Gomes... Das
conversas com eles, tirou uma ideia de quão representativa aquela defesa
foi para o futebol pentacampeão mundial. Ele fala com admiração de
Zico, mas diz que prefere Platini. E lamenta que o Galinho jamais tenha
conquistado uma Copa do Mundo - um feito que, na visão do ex-arqueiro, o
colocaria em um nível ainda superior.
O algoz: Bats defendeu cobrança de Zico na Copa do Mundo de 1986 (Foto: Claudia Garcia)
As mãos que defenderam a cobrança de Zico jamais tiveram a oportunidade
de cumprimentar sua vítima. Bats espera mudar isso. Quer ter a
oportunidade de rever o ídolo do Flamengo em 2014 - quando, aposta ele, o
Brasil será novamente campeão do mundo.
GLOBOESPORTE.COM: Como foi o seu dia antes de começar o duelo
entre Brasil e França em 1986? Chegou a ter algum pressentimento de que
seria o seu dia?
BATS: Sinceramente, não. A minha preocupação era o meu
joelho, eu estava lesionado. Joguei as oitavas de final contra a Itália
com muitas dores. Só pensei em ter força para jogar essa partida. O
estado de espírito do time era muito tranquilo, porque, para nós, jogar
as quartas de final contra o Brasil era como jogar uma final. Também
tínhamos uma grande equipe com jogadores como Michel Platini, Dominique
Rocheteau, Alain Giresse, Jean Tigana... Era um time com muita
experiência e para muitos desses jogadores a Copa de 86 era a última.
Por isso nós também queríamos tentar vencer um título mundial, depois da
Eurocopa em 1984, mas pela frente tínhamos o Brasil de Zico, Sócrates,
Careca, etc. Não tinha medo, estava muito feliz por disputar aquele
jogo. Lembro-me que fazia um calor incrível em Guadalajara, o estádio
estava cheio de gente, muitos jovens, muita música, bandeiras por todo o
lado. O ambiente era fantástico.
Zico bate o pênalti, Bats voa para a defesa: 'Zico chutou mal, cobrou com pouca força' (Foto: Agência AFP)
Você estudava a forma de o Zico bater os pênaltis? Desde quando acompanhava a carreira dele?
Do Zico, não. Mas conhecia bem a forma de o Sócrates bater o pênalti.
Nessa Copa ele marcou um de pênalti contra a Polônia, idêntico àquele
que ele tentou marcar contra nós, e por isso eu defendi (NR: na disputa
de cobranças, após empate de 1 a 1). Eu me lembro de ver a corrida do
Sócrates de longe e pensar: “Ele vai chutar do mesmo jeito, com força e
no alto.” Ele cobrou igualzinho, à direita, e eu consegui defender.
Durante a partida, o Zico tinha acabado de entrar, mas eu sabia que ele
era um jogador com uma grande técnica, passes curtos, que jogava com o
interior do pé. Eu pensei: nessa época um jogador técnico não batia
pênaltis com força. Foi isso o que aconteceu. Foi o mesmo com o Platini,
ele também falhou na disputa de pênaltis, porque era um jogador com
muita técnica. Mas eu não entendi por que é que o Zico foi reserva nesse
jogo...
Ele vinha de uma longa recuperação após cirurgia no joelho
esquerdo e por isso ficou no banco, quase nem foi para a Copa. Você não
sabia disso?
Não.
Acha que isso pode ter influenciado na cobrança do pênalti?
Pode ser que sim, ele tinha acabado de entrar. Pode ter a ver com os
níveis de confiança do jogador, que na cobrança de pênaltis são muito
importantes.
No momento em que você derrubou o Branco - aliás, no futebol
moderno, essa falta lhe valeria uma expulsão -, houve vários jogadores
do Brasil que festejaram a falta, como se o gol já estivesse garantido.
Isso lhe deu raiva ou motivação extra?
Bats temeu ser o vilão de uma eliminação da
França (Foto: Claudia Garcia)
Eu lembro bem da comemoração antecipada dos brasileiros e pensei para
mim mesmo: “Não quero que esse pênalti elimine a França.” Eu fiz a
falta, e, se o Brasil marcasse, teria vencido aquele jogo. Todo o mundo
iria recordar da falta e do pênalti. Eu seria o vilão do jogo. Então, eu
tinha que pegar o pênalti a todo custo, não queria que o Zico
eliminasse a França. Fiquei concentrado e tinha uma ideia: ficar parado,
não me mexer, não mostrar o lado para o qual ia cair, porque os
jogadores de grande técnica conseguem perceber para que lado o goleiro
vai cair.
Você disse que preferiu ficar parado para esperar a cobrança. Isso foi decidido antes ou chegou a essa conclusão na hora mesmo?
Foi na hora mesmo. O goleiro joga com instinto.
Acha que ele telegrafou para onde iria bater?
Não sei, mas na minha cabeça estava decidido que ele iria abrir o pé e
chutar para a minha esquerda e por isso eu não me mexi e parti depois.
Considerava Zico o maior batedor de pênaltis?
Sabia que ele era um grande jogador. Marcou mais de 50 gols pela seleção, era um ídolo...
Mas quem era para você o melhor batedor de pênaltis do mundo?
Para mim era o Platini, sem dúvida. Curioso que os dois falharam nesse
jogo. Eu lembro que o Platini treinou bastante comigo a cobrança de
pênaltis antes da partida. Ele chutava muito forte e colocava bem a
bola, mas com a pressão desse jogo ele falhou. Mas para mim era o
melhor.
Acha que teve mais mérito na defesa ou foi o Zico quem cobrou mal mesmo?
Foi ele quem chutou mal, ele cobrou com pouca força. Um pênalti deve
ser cobrado com força, é mais difícil para o goleiro pegar, mesmo que
adivinhe o lado. Os jogadores com muita técnica, como Zico e Platini,
aguardam até o último momento para ver se o goleiro se mexe e depois
colocam a bola nesse canto. Se ele tivesse cobrado com força, mesmo que
eu tivesse acertado o lado, teria sido difícil pegar.
Para você, Zico foi o vilão do Brasil naquela eliminação, ou a
culpa também foi de Sócrates e Júlio César, que falharam na disputa de
pênaltis depois?
Goleiro também defendeu pênalti cobrado por
Sócrates: 'Não teve culpa' (Foto: AFP)
Os melhores também erram pênaltis. O futebol é assim mesmo, mas o Zico
foi quem cobrou pior. O Sócrates chutou bem, ele não teve culpa, mas eu
tinha estudado o seu jeito de bater e já esperava aquela cobrança. O
Júlio César cobrou com muita força, eu sabia que ele ia chutar à direita
e me joguei para o lado certo, acertou na trave, mas talvez eu tivesse
defendido esse pênalti também. Ele também chutou bem. O Zico desperdiçou
uma oportunidade, vamos dizer assim.
Naquele momento, imaginou a dimensão que a sua defesa teria depois?
Não, porque o jogo continuou, houve um escanteio e ficamos todos concentrados.
Tinha noção que essa defesa ia marcar a carreira do Zico?
Só muito depois. Imagina, 27 anos mais tarde, estamos aqui ainda
falando sobre isso. Todos os brasileiros que jogaram na França me
falaram sobre o pênalti, é incrível. O Ricardo Gomes, o Juninho
Pernambucano, todos... Os amigos deles que vinham na França me
perguntavam sobre o pênalti e me cobravam de ter feito o Brasil inteiro
chorar nesse dia.
Se a carreira do Zico ficou com essa mancha negativa, podemos dizer que a sua ganhou alguma coisa com a defesa?
Acho que sim, porque todos me perguntam. Às vezes tenho a impressão de
que só joguei esse jogo na minha vida. Todos me falam dessa partida.
Mas o que você ganhou com isso?
Algum reconhecimento. No nível de títulos, os mais importantes foram
antes desse pênalti. Fui campeão da Europa (1984) e campeão de França
pelo PSG antes da Copa (1986). Foram os maiores feitos da minha
carreira. Depois do jogo com o Brasil, ela prosseguiu de forma normal.
Se soubesse que essa defesa marcaria tanto a carreira de um grande jogador, você defenderia hoje aquela cobrança?
Sim, claro que sim.
Bats jamais falou com Zico depois do dia em que defendeu pênalti do brasileiro (Foto: Claudia Garcia)
Em entrevista a um jornal carioca em 2011, você pediu desculpas a Zico. Por quê?